quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

As ondas partem sempre para o mesmo lado





Nunca precisei de ajuda para sair do Mar. As ondas partem sempre para o mesmo lado e as espumas, por maiores que sejam, levam-nos sempre para a costa. Não seria bodyboarder há 15 anos se não tivesse já apanhado um susto, se não tivesse já pensado que morria ou que me tinha enganado ao pensar que as ondas até estavam dentro dos meus limites. Mas a verdade é que sempre me consegui safar sozinho e entre todos os meus irmãos de praia só um me tentou salvar: o velho Bond.

Carcavelos, num sábado de inverno pode ser assustador. Sobretudo se o ângulo de visão for a um metro do chão. E ele não queria acreditar. Primeiro que eu cheirasse a borracha, depois que raio de sapatos eram aqueles – azuis, amarelos e desproporcionados? No limite, não percebeu porque raio eu, depois de o cumprimentar com umas festas, decidi entrar num mar onde as ondas partiam, com estrondo, sempre para o mesmo lado. Ladrou, lançou-se à água, molhou a minha irmã e quase a arrastou pela areia. Não queria que eu fosse. As espumas eram ameaçadoras e ele, que nunca foi parvo, sabia que resgatar-me daria muito trabalho. Sempre foi preguiçoso o Bond.

Anos depois fui quem o salvou das ameaçadoras águas do rio Zêzere. O apelo da voz da dona - gosto de pensar que ouvir a minha também ajudou - vinda do meio do rio, obrigou-o a entrar em acção. Lançou-se à água e prontificou-se a atravessar a albufeira para encontrar a mão que o alimentava. Não sabia que bem pior que as ondas que partem sempre para o mesmo lado são as doces águas dos rios - nelas nadar é mais complicado e as distâncias são bem mais longas do que parecem. Dessa vez fui eu que saltei para a água e nadei na sua direcção. Estava esgotado o Bond. Ofereci-lhe o peito e os braços para subir ao pequeno barco e ele aproveitou-os vigorosamente. Dessa vez, fui eu, à custa de vários arranhões, quem o safou. Mas o Bond nunca foi ingrato. Sentado, a seco, no pequeno barco, agradeceu. Falava com os olhos e nessa altura a mensagem era evidente. “Foi por pouco. Obrigado, ‘tio’”.

Nasceu há sete anos, preto, gordo e rafeiro. Gente ou cão, não é fácil nascer preto, gordo e rafeiro. E as ondas partem sempre para o mesmo lado. No quintal onde o fui buscar, era o que mais comia e não desperdiçava uma oportunidade de, nem que fosse preciso empurrar um ou dois dos irmãos mais franganotes, gamar alguma ração. Comprei-lhe a primeira coleira. De tão pequeno que era, comprei uma para gatos. Vermelha pois claro. Sabiam que o Bond é do Benfica? Nasceu preto, gordo e rafeiro, filho de pai incógnito como tantos filhos da puta que por ai andam. Mas o Bond lixou-se. Era preto, gordo, rafeiro e mesmo no mundo dos cães, as ondas partem sempre para o mesmo lado. Os verdadeiros filhos da puta safam-se, ou outros, sejam rafeiros, gordos ou pretos, lixam-se. E o Bond lixou-se. A doença tirou-lhe o brilho dos olhos, os medicamentos roubaram-lhe a agilidade e amanhã despedimo-nos.

O Bond tem um irmão surfista. Queixa-se o dono das pranchas destruídas e que se arrepende do dia em que levou o Bernie às ondas e lhe mostrou que, com as quatro patas em cima daquele estranho objecto branco, se conseguia caminhar sobre as águas. Depois desse dia, na casa do Bernie, as pranchas passaram a ser guardadas no topo dos móveis. Fibra que ficasse no chão, era alvo de ataque das patas do Bernie que, desesperado, esgravatava para a tentar fazer andar.

Mas o Bond tem alma de Bodyboarder. Na praia, não havia onda que o assustasse. Por maior que fosse o closeout, por mais pequeno que ele fosse ou por mais espuma que houvesse, a reacção era sempre a mesma: saltar, nadar e, invariavelmente, regressar embrulhado numa espuma até à areia. Sempre de cauda a abanar. Amanhã, despedimo-nos, mas antes vamos às ondas. Se quiser, deixo-o esgravatar a minha prancha. Foi cara, está nova e deve ficar inutilizável, mas não quero saber. No final do dia, quando regressar a casa, não será um naco de PP rasgado que me vai entristecer. Afinal as ondas partem sempre para o mesmo lado e bem pior que surfar numa prancha estragada será não ter o preto, gordo, rafeiro à minha espera para me tentar comer os pés de pato.

Bons Tubos Bond

5 comentários:

  1. Nao conheço o Bond, mas...


    ...


    Boas Ondas...

    Ricardo

    P.S.: Os meus pêsames..

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  2. triste ter de perder um amigo.

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  3. fdx o "nosso" Bond!!!
    Grande Cão em todos os sentidos!!

    Saudades!!

    abraço
    Puto Migas

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  4. Não conheço o autor do texto, nem o Bond, mas foram palavras muito bonitas! Abraço para o dono e grandes ondas para o Bond.

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